Legado de Malba Tahan resiste por uma matemática mais democrática

Escritor criado pelo professor Júlio César de Mello e Souza atuou em busca de uma matemática mais acessível aos povos. Até hoje, professores disseminam a ludicidade defendida por uma das maiores referências da área. Os atuais desafios para popularizar a matemática, porém, são incalculáveis

O indiano Neelakantha Bhanu Prakash é considerado a “calculadora humana mais rápida do mundo”, segundo o Limca Book of Records. Em apenas 26 segundos, ele foi capaz de resolver quanto é 869.463.853 vezes 73. Eu arrisco a dizer, porém, que um jovem nordestino respondeu a uma questão de forma muito mais veloz.

“O que deve ser feito, nas escolas brasileiras, para que os estudantes gostem de matemática?”. Mais rápido que o indiano recordista, José Guilherme de Souza Cruz, 25 anos, precisou de menos de dez segundos para responder a esse questionamento: “Retirar a matemática da grade curricular dos colégios”. Em tom irônico, o morador da comunidade de Brasília Teimosa, Zona Sul do Recife, revelou vestígios de uma época escolar assombrada pela disciplina.

José Guilherme conta que, até o ensino infantil, mantinha uma relação amigável com os números. Mas, a partir do nível fundamental, ele passou a sofrer, literalmente, uma série de “problemas matemáticos”.

“Gostava de expressão numérica, pois na educação infantil era bem tranquilo. Porém, quando eu cheguei na quinta, sexta série, tudo ficou muito complicado, e eu me tornei bem impaciente. A escola misturou tudo: número com letras, formas. Tinha também um negócio de geometria. O gatilho para eu não gostar da matemática começou com este negócio de ângulo, de número negativo e positivo. Tirei muitas notas baixas. Na maioria das vezes, eu ia para a recuperação”, relata.

José Guilherme acredita que a maneira pela qual boa parte dos professores ensina a matemática nas escolas brasileiras desencanta os olhares dos alunos em relação à matéria. Ao longo da sua vida escolar, o recifense afirma que viu aulas de professores que se resumiam a resolver as questões sem exemplificar como a matemática é aplicada na rotina das pessoas.

De acordo com José Guilherme, que atualmente trabalha como designer, pelo fato de os docentes dominarem a matemática e diante do cansaço oriundo de expedientes extenuantes, faltavam paciência e ludicidade, entre os professores, na hora de ensinar o conteúdo.

Somam-se ao rapaz outros milhares de brasileiros que desaprovam a matemática. Segundo o Censo Escolar, do Ministério da Educação (MEC), a disciplina foi apontada, mais uma vez, como a mais difícil do ensino médio nacional entre escolas públicas e privadas. Conforme dados do estudo, apenas 27% das questões matemáticas foram acertadas durante uma avaliação que mede o rendimento dos estudantes, enquanto em Língua Portuguesa, o percentual de acerto foi de 59%.

Uma pesquisa da plataforma de reforço escolar TutorMundi identificou, ao entrevistar estudantes dos ensinos fundamental e médio, quais disciplinas são as mais difíceis. A matemática ocupou a primeira colocação, superando, inclusive, física e química.

Por trás do discurso de que “matemática é difícil”, existe uma série de teorias e debates que tentam explicar por que há tanto desconforto dos alunos para com a disciplina. Ao mesmo tento, educadores investem em metodologias pedagógicas que visam um ensino lúdico e agradável, fugindo da rigidez de uma matemática dura e desconexa do dia a dia.

O fato é que não há como discordarmos da importância da disciplina para a formação escolar dos nossos estudantes e principalmente da aplicabilidade da matemática na sociedade. Mas, da mesma forma que defendemos que a matemática é presente em nosso cotidiano, devemos remontar ao passado.

É nele onde encontramos uma das maiores referências mundiais para a popularização da matéria. Décadas atrás, sob uma atmosfera fantasiosa e literária, o professor Júlio César de Mello e Souza construiu um legado incalculável e de incontáveis histórias, cujos ensinamentos mostram-se, até hoje, infinitos e capazes de romper fronteiras físicas, geométricas e mentais. Uma pessoa que alimenta a crença de que matemática é difícil, ao ser submetida aos contos do professor Júlio César, ou melhor, do escritor Malba Tahan, recalcula as suas crenças e identifica como o ensino matemático pode ser prazeroso.

Um homem que calculava, mas que também contava histórias

Os tímidos corredores de uma escola privada e periférica estavam agitados. Crianças corriam de um lado para o outro, carregando cartolinas, canetas coloridas e tecidos. Eufóricas, preparavam os últimos detalhes de suas apresentações. Em menos de uma hora, ficariam diante dos demais alunos e de um professor de matemática ovacionado pelos estudantes da unidade de ensino localizada no bairro da Iputinga, Zona Oeste do Recife.

As turmas do ensino fundamental do Colégio Maria Consuelo realizaram trabalhos pedagógicos para retratar o legado do professor de matemática Júlio César de Mello e Souza, considerado a maior referência brasileira no contexto da popularização da disciplina a partir de abordagens lúdicas e literárias.

À época, com 11 anos, Paulo Felipe Conti se debruçou nas leituras a respeito do legado do professor. Ficou encantado ao descobrir que Júlio César criou um personagem de pseudônimo Malba Tahan, autor de contos, histórias e livros que nos levam a uma viagem imagética e literária, em um contexto em que problemas matemáticos são associados a enredos e aventuras criativas. O resultado dessa conta: uma matemática leve e prazerosa.

A experiência do trabalho pedagógico e a oportunidade de conhecer as obras de Malba Tahan fizeram Paulo Felipe apreciar a matemática de uma maneira que desconstruiu a visão de uma disciplina extremamente difícil. Mesmo optando por uma formação em história, Paulo, hoje com 32 anos, preserva as memórias dos contos de Malba Tahan que o fizeram gostar de matemática.

“Essa experiência fica hoje muito mais registrada como uma memória afetiva, acompanhada pela sensação que nós tivemos ao sermos apresentados a uma nova forma de pensar a matemática e a formas muito mais dinâmicas, alimentadas pelas aventuras do personagem, para compreendermos a disciplina diante dos seus desafios do presente e do futuro. Acontece que esse pensamento e essa memória permanecem vivos na medida em que nos convidam a refletir sobre a necessidade constante que os professores têm de se reinventar”, comenta.

Com quase três décadas de docência, Ricardo Ugiette, o professor que sugeriu o trabalho sobre Malba Tahan há mais de 20 anos, continua promovendo atividades pedagógicas e pesquisas acerca de Júlio César de Mello e Souza e, claro, do seu personagem Malba Tahan. “A gente tem em mente, sempre, que o principal obstáculo dos professores é a visão preconceituosa de que a matemática é difícil e meramente técnica. E que exige uma vocação especial. Isso não é verdade”, opina Ugiette.

O educador complementa: “O legado desse escritor extraordinário influencia o meu dia a dia como docente para evidenciar a matemática como uma ferramenta utilizada pela sociedade, de uma maneira diferente e lúdica. Ferramenta essa presente em todas as profissões e em todas as áreas da educação, proporcionando conclusões a partir de suas respostas”.

Júlio Cesar de Mello e Souza nasceu em 6 de maio de 1895, no Rio de Janeiro. Sua infância, entretanto, se deu na cidade interiorana de Queluz, no Estado de São Paulo. Seus pais trabalhavam como professores no município e, desde cedo, levavam o filho para acompanhá-los em sala de aula.

Júlio César de Mello e Souza é considerado um dos maiores professores de matemática do mundo. Foto: CME/FE-Unicamp.

Sob a influência educadora dos pais, Júlio realizou a formação primária em casa. Na infância, ajudou a mãe nas atividades escolares de diversas formas: limpava o quadro, distribuída cadernos, contava histórias para crianças mais novas, além se conectar, desde cedo, à literatura e à prática docente.

Com oito irmãos, Júlio levou uma vida simples em decorrência de dificuldades financeiras. Nada, porém, que o impedisse de investir em educação. Aos 11 anos, ele foi aprovado em um exame de admissão do Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde estudou por três anos.

Em 1909, também no Estado do Rio de Janeiro, migrou para o Colégio Pedro II, em São Cristóvão. Já em 1912, conseguiu o seu primeiro emprego formal, na função de auxiliar administrativo na Biblioteca Nacional. Um ano depois, ele ingressou no curso superior de engenharia, na Escola Politécnica da Universidade do Brasil, onde aprofundou os seus conhecimento em matemática.

Depois da morte de seu Pai, Júlio César se mudou, junto com a família, em 1914, para a cidade do Rio. Nesse período, sua mãe criou uma escola, onde ele e seus irmãos atuavam como professores. O prédio em questão também serviu de lar para a família.

O dom matemático somou-se à literatura

Registros históricos apontam que, além do fascínio pela matemática, Júlio César era um ferrenho amante da literatura. Desde a infância, enriqueceu a sua formação escolar com leituras de diversas obras. No entanto, apenas aos 24 anos, ele vivenciou uma experiência que serviu de faísca para a criação do seu pseudônimo.

Quando trabalhou como tradutor de correspondências de guerra em um jornal, no Rio de Janeiro, Júlio entregou um de seus contos ao editor jornalístico do veículo de comunicação. O texto, entretanto, foi rejeitado.

Inconformado com a rejeição, o professor de matemática pegou o texto de volta e colocou, como autor, um nome americano inventado. Em seguida, afirmou ao editor que se tratava de um renomado escritor estrangeiro. No dia posterior, o conto em questão, batizado de “A história dos oito pães”, foi publicado pelo jornal.

A partir desse episódio, Júlio César de Mello e Souza criou o pseudônimo Malba Tahan. Era um personagem árabe com características reais, descritas por Júlio com base em estudos acerca da cultura e da língua da Arábia Saudita, pois a sua intenção era produzir uma biografia e obras reais, condizentes com a linguagem e ambientação das histórias, em um processo chamado por ele de mistificação literária.

Em 15 de abril de 1973, Júlio César concedeu, na cidade do Rio de Janeiro, uma entrevista ao Museu da Imagem e do Som. Na ocasião, ele descreveu o surgimento do personagem Malba Tahan, o pseudônimo por trás os livros e contos. Ouça um trecho:

O artigo “Malba Tahan: muito além do pseudônimo”, dos autores Pedro Paulo Salles e André Pereira Neto, revela que, no ano de 1924, Júlio César inicia as suas publicações no jornal “A noite”, utilizando o pseudônimo Malba Tahan. Entretanto, o artigo esclarece: “Apesar de suas intenções serem claras quanto ao pseudônimo, cabe ressaltar que o primeiro livro que publicou, ‘Contos de Malba Tahan’, de 1925, ainda assinou com o seu próprio nome, porém tendo Malba Tahan no título como suposto autor dos contos”.

A história de Júlio César se confunde com a do personagem criado por ele. O fato é que o criador e a criatura vivenciavam um cenário semelhante no que diz respeito ao contexto do ensino da matemática à época. O estudioso Sérgio Lorenzato, doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-doutor em Didática da Matemática, pela Universidade Laval, no Canadá, descreve como era a disciplina.

“Nas décadas em que Júlio César de Mello e Souza viveu, o ensino e a aprendizagem da matemática se caracterizaram por muitas definições e fórmulas, rigorosas demonstrações, exercícios com cálculos imensos, o que induzia os alunos à memorização de processos e resultados, qualquer que fosse a série ou a idade”, relata o pós-doutor. Lorenzato, inclusive, se sente honrado, pois foi um dos alunos de Mello e Souza

Ainda de acordo com Lorenzato, a matéria era concebida como um conjunto de conhecimentos completamente acabados e ordenados, assim como a relação de conteúdos era rigidamente determinada, sendo a mesma para todas as escolas.

Considerado uma referência nas discussões acerca do ensino de matemática, Lorenzato ainda descreve, em um artigo, os detalhes que ilustram a maneira como a sociedade brasileira se relacionava com o ensino da matemática. “As atividades dos alunos, usualmente, se resumiam na transcrição do ditado pelo professor e na cópia do que esse descrevia no quadro. Não existiam periódicos, livros ou artigos a respeito do ensino da matemática. Havia apenas alguns poucos livros didáticos para alunos. Não existiam movimentos educacionais para melhorar a matemática, nem cursos universitários para a formação de professores de matemática. Meia dúzia de cursos que assim se intitulava tinha apenas o objetivo de formar matemáticos”, explica.

O educador continua: “A carência de professores licenciados era enorme. Mas, a sociedade aceitava isso sem questionamentos, bem como aceitava crendices, tais como ‘Bom professor de matemática é aquele que reprova muitos alunos’, ‘Matemática é abstração feita de números, contas e problemas’ e ‘Matemática é para poucos’”.

Doutor em Didática da Matemática pela Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha, o professor Antônio José Lopes Bigode também explana a respeito da matemática criticada por Júlio César e, por consequência, combatida por Malba Taha:

“Uma matemática que um exercício você levava 30 minutos para começar a tentar resolver, com números que tinham cinco casas decimais, cujo único objetivo era mostrar para os alunos que eles eram incompetentes. Essa era a crítica de Malba Tahan. Então, o Malba Tahan traz problemas instigantes e que nos obrigam a pensar, e não problemas que querem saber se você tem fôlego. Matemáticas instigantes e que qualquer pessoa que tenha atenção ao raciocínio lógico consegue resolver, independente de ela ter recebido uma instrução. A matemática criticada pelo escritor criava um bloqueio nos estudantes, pois não era instigante”, conta o doutor.

Na construção de suas narrativas, Malba Tahan – envolvido pela essência de Júlio César – buscava objetivos literários e outros de cunhos humanista, moral e social. Ele condenava, por exemplo, o uso da matemática para qualquer iniciativa violenta e desumana, como no caso das estratégias de guerra. O conflito de Malba Tahan também era incisivo contra um inimigo batizado por ele de “algebrismo”.

No artigo “Malba Tahan: muito além do pseudônimo”, o escritor descrevia o algebrismo com estas palavras: “Um inimigo roaz e pernicioso; um inimigo que é para a matemática como a broca para o café, a lagarta para o algodão e a saúva para todo o Brasil”.

Com o objetivo de popularizar a matemática entre os brasileiros, a tornando prazerosa e acessível a todos, e de disseminar um ensino da disciplina com estratégias pedagógicas que fugissem das abordagens tradicionais, Júlio César investiu além dos contos, por meio da publicação de livros de divulgação científica. Entre as obras, podemos destacar “Matemática divertida e pitoresca (1941)”, “Diabruras da matemática (1943) e “As grandes fantasias da matemática (1945).

Outro de seus combates se traduz na figura de Beremiz, o “Homem que calculava”. Ao desenhá-lo, Júlio César cria um personagem semelhante a tantos homens sábios e que dominam os cálculos, apesar de não terem frequentado os bancos escolares. Além disso, Beremiz defende princípios morais rígidos: ele se recusava a fazer qualquer cálculo cujo resultado pudesse promover a guerra, a fome, mortes ou qualquer outra ferramenta de injustiça e desigualdade social.

Dessa forma, além de tratar a matemática de forma lúdica e divertida, a obra de Malba Tahan introduz, sistematicamente, valores morais e éticos que transcendem o tempo e o espaço. O personagem Beremiz é o porta-voz desses valores. Um homem simples, que dá aulas de matemática e de moral aos leitores e aos que ocupam o poder.

Na visão da doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Andreia Dalcim, o professor Júlio César, revestido pelo personagem Malba Tahan, é considerado um educador à frente de seu tempo, preocupado em transmitir o ensino matemático com ludicidade, leveza e diversão, associando os conteúdos da disciplina à realidade dos alunos. “O professor de matemática Júlio César, ao longo de sua trajetória, desenvolveu algumas ideias centrais importantes. Mas, é importante entendermos que ele não desenvolveu uma metodologia, no sentido de um método de ensino que possa ser aplicado hoje. A sua principal contribuição, para mim, é a sua preocupação em tornar a matemática algo interessante e divertido, que ultrapassa as necessidades básicas da vida cotidiana. Uma matemática que se relaciona com as outras áreas, em espacial a literatura, que potencializa a resolução de problemas inusitados”, comenta a doutora em Educação.

Com cerca de 120 títulos publicados e inspirados na cultura árabe e na própria matemática, o professor Júlio César de Mello e Souza, por meio do personagem Malba Tahan, é reconhecido no Brasil e no exterior. O “Homem que calculava” é o livro de maior destaque de sua trajetória; a primeira publicação foi realizada em 1938.

A obra foi laureada pela Academia Brasileira de Letras, em 1940 e 1972. O escritor Monteiro Lobato, em 1939, afirmou, sobre o livro “O homem que calculava”: “Este livro ocupa lugar de honra entre os livros que conservo; obra alta, das mais altas, e só necessita de um país que devidamente o admire”.

A obra narra as aventuras de um calculista persa que, durante uma longa viagem, resolvia problemas aplicando a ciência matemática, como em um dos casos mais famosos, o conto dos 35 camelos. O final dessa história revela uma lúdica e inteligente resolução.

Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em 15 de abril de 1973, o escritor deu detalhes sobre o conto. Ouça a seguir:

Para o doutor em Didática da Matemática Antônio José Lopes Bigode, alguns pontos explicam o sucesso do “Homem que calculava. “Em primeiro lugar, a linguagem. A linguagem de um livro de literatura, em que é possível ler e pensar, é diferente de um livro didático com uma lista de exercícios. O livro atende a uma demanda dos professores de tornar a disciplina mais agradável e leve, pois a matemática é considerada uma disciplina pesada. Ela realmente é, porque, muitas vezes, é mal ensinada ou ensinada no tempo errado”, opina.

Legado de Malba Tahan e sua propagação pelas escolas brasileiras

Além de sua contribuição literária, o professor Júlio César lecionou em importantes instituições de ensino, a exemplo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também propagou os seus saberes no tradicional Colégio Pedro II, no Rio, considerado um emblemático palco para o escritor. No Pedro II, Júlio ingressou como aluno e brilhou.

Renato de Carvalho Alves, que atuou como coordenador geral do Departamento de Matemática do Colégio Pedro II, atesta o legado de Júlio César e do personagem Malba Tahan para a instituição de ensino e para a educação brasileira de uma forma geral. “O professor Júlio César era crítico às metodologias de ensino da época, pois a matemática era apresentada de maneira abstrata, com os alunos tratando objetos puramente matemáticos, sem vínculo com a realidade do aluno e sem ludicidade. Apenas com foco na memorização de fórmulas e na reprodução de procedimentos, e não na compreensão”, explica Renato.

“Junto com outros professores, como o emblemático Euclides Roxo, ele iniciou um movimento que defendia uma nova forma de ensinar a matemática. Uma das contribuições foi aproximar a matemática das histórias de fantasia, da parte lúdica em torno dos jogos e do cotidiano. Um leitor dos livros de Malba Tahan se sente capaz de fazer matemática por meio das leituras dos contos, porque há algo próximo a ele e não é um algo impossível. Estimula o raciocínio”, acrescenta.

Com duas décadas de sala de aula, o professor de matemática Ricardo Rocha, de 39 anos, tem Júlio César e seu personagem Malba Tahan como algumas de suas referências de ensino. A ludicidade é uma das marcas de Rocha, nas escolas em que trabalha e, principalmente, em sua casa.

É com a filha Sofie Félix Oliveira da Rocha, nove anos, aluna do terceiro ano do Fundamental I, que o professor coloca em prática a educação matemática baseada no cotidiano e em brincadeiras infantis. Ao conversar com Sofie, Ricardo Rocha transforma um simples triângulo de cartolina em uma analogia com as pirâmides do Egito, assim como o vai e vem de um balanço em um parque se transforma em um papo matemático.

Diante da sua história em prol da popularização da matemática e do seu legado perpetuado, até hoje, entre muitos professores, Júlio César é reconhecido no Brasil e no exterior. Em sua homenagem, o Dia da Matemática, celebrado em 6 de maio, é dedicado à trajetória do criador de Malba Tahan.

O professor Júlio César faleceu em 18 de junho de 1974, aos 79 anos, vítima de um ataque cardíaco. Ele estava em Recife, onde, dias antes do óbito, lecionou um curso sobre a arte de contar histórias.

Suas histórias, porém, resistem. Estão vivas em suas obras e na memória de quem as lê. A matemática de Malba Tahan é colorida, leve e acessível para todos os povos, independentemente de classe social, cultura e nível educacional.

Mas, onde está a raiz do problema?

“Por que a matemática é vista como difícil?”. Talvez não encontremos uma resposta exata, afinal, existem inúmeras teorias e visões que tentam explicar por que a matéria causa desconforto em tantos estudantes.

A pesquisadora Marisa Rosâni Abreu da Silveira, da UFRJ, em seu artigo “Matemética é difícil: um sentido pré-construído evidenciado na fala dos alunos”, debate o tema, aprofundando-se no pré-conceito contra o ensino matemático disseminado em várias sociedades.

O artigo diz: “Valendo-se da tríade ‘ler, escrever e contar’, a matemática ocupa o lugar das disciplinas que mais reprovam o aluno na escola. A justificativa que a comunidade escolar dá a essa ‘incapacidade’ do aluno com esta área do conhecimento é que ‘matemática é difícil’ e o senso comum confere-lhe o aval. Como matemática é considerada útil, o aluno não pode passar para a série seguinte sem atestar seu conhecimento na disciplina e desta forma aceita-se, inclusive, que o aluno seja reprovado apenas em matemática, nem que seja por décimos para atingir a média instituída pela escola onde estuda”.

Em sua continuação, o artigo aponta que o fato de a matemática reprovar significativamente o aluno na escola ser aceito sem contestações pela comunidade escolar, leva-nos a fazer algumas reflexões sobre “o fracasso do aluno na disciplina, levando em conta a justificativa de que ‘matemática é difícil’”. Segundo a autora, “a análise das formulações discursivas dos alunos quando falam desta dificuldade, bem como os fatos históricos que contribuíram para esse pré-conceito e para a ideia de que “matemática é para poucos”, mantêm, ao longo do tempo, os pensamentos contrários à disciplina em toda a comunidade escolar, além da mídia.

De acordo com Marisa Rosâni, não é possível localizar, exatamente, onde nasceu o discurso de que matemática é difícil e exclusiva apenas para alguns indivíduos capazes de entendê-la. Porém, a pesquisadora apresenta alguns recortes históricos que indicam a base da crença de que matemática é para poucos. Segundo a autora, devido aos problemas ligados ao início das estações hídricas na época dos sacerdotes egípcios, houve a necessidade da execução dos primeiros cálculos,

“Foram eles os primeiros “matemáticos”, os primeiros calculistas. Os sacerdotes egípcios executavam laboriosas medições a fim de adquirirem um razoável conhecimento acerca das enchentes e vazantes do Rio Nilo. Em seus templos, bem dissimulados, existiam nilômetros, aparelhos que os ajudavam nesse mister. O povo não participava desse trabalho nem conhecia a existência desses instrumentos. Assim, quando os sacerdotes previam determinada enchente vazante, tal previsão era recebida pelo povo aureolada de profecia; por via de consequência, os sacerdotes recebiam não apenas reverências reservadas aos profetas e deuses, como, possivelmente mais importante que isto, outras homenagens mais materiais como presentes e dinheiro. Dessa forma, desde o início, a produção e organização do conhecimento matemático estavam em mãos da classe dominante, já que os sacerdotes constituíam – se em aliados importantes do poder (Tenório,1995, p. 105). Nesse primeiro recorte discursivo, aparece a presença do não-dito, o que não aparece no discurso dos sacerdotes, ou seja, o ocultamento de informações para a comunidade, que com isso obtinham mais prestígio, demonstrando assim, o caráter ideológico que a matemática começa a apresentar, confirmando o discurso que diz que a ‘matemática é para poucos’”, explica a pesquisadora.

Na visão do professor Guilherme Silva, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP), um dos contextos que explicam o pensamento de que a matemática é uma área difícil está associado ao desenvolvimento industrial. “Com o desenvolvimento industrial há alguns séculos, a sociedade se viu em uma necessidade de formar pessoas para trabalhar em tarefas muito específicas. Então, a relevância, por exemplo, para a contabilidade naquele momento, estava na pessoa que soubesse fazer cálculos com eficiência, entendendo como estruturas matemáticas surgem. Mas, hoje, a realidade da sociedade é distinta: problemas altamente complexos necessitam de soluções que são multidisciplinares. Por exemplo, o desenvolvimento de carros autônomos não se restringe a construir a tecnologia necessária em si, mas passa também pela discussão – científica, inclusive – acerca do dilema ético em como o carro autônomo deve se comportar quando suas únicas opções serão ou bater no carro vizinho ou no pedestre na rua. A matemática em si é uma linguagem para descrever fenômenos do mundo. Porém, essa linguagem, vista isoladamente, é abstrata, o que por vezes causa dificuldade para sua compreensão”, opina o docente da USP.

Para o professor, uma das chaves para a boa educação matemática está na necessidade de desenvolvermos em estudantes a capacidade de enxergar a matemática em áreas além da própria matemática em si. “Devemos entender, por exemplo, a essência do funcionamento de ações em bolsa de valores a partir do lançamento de moedas, as diferenças fonéticas entre o português brasileiro e de Portugal, além da matemática que detecta diferenças genéticas através do DNA de pessoas”, sugere.

Guilherme Silva complementa: “A matemática que explica a bolsa de valores e o DNA, claro, não é necessariamente simples. Quando dizemos que estudantes podem entender tais fenômenos sob a ótica matemática, estamos falando sobre compreensão em um nível ilustrativo, de associações. Mas, ainda assim, essa compreensão é importante, pois traz sentido ao estudar de matemática, e curiosidade para compreendê-la mais profundamente. E esse caminhar, desde o conhecimento de tais associações até o estudo da matemática em si, passa fundamentalmente por professores, que devem ter formação aprimorada para conseguirem trazer essas conexões à tona. Aqui, entram também as ideias de Malba Tahan, pois muitos conceitos matemáticos podem ser aprendidos de maneira lúdica, aproximando a matemática à vida cotidiana”, finaliza.

Professora doutora em Psicologia Cognitiva, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e pós-doutora pelas Universidades de Burgos e Laval, na Espanha e Canadá, respectivamente, Gilda Lisboa Guimarães reconhece a importância da ludicidade para o ensino da matemática, mas alerta que apenas ela é insuficiente.

A ludicidade é fundamental, a gente precisa ter prazer nas atividades. Mas, talvez não seja um dos fatores mais prementes. A questão da funcionalidade e do conhecimento matemático que pode exercer efeitos no mundo atual é o elemento mais importante. A ludicidade, sozinha, não é suficiente, porque precisamos de fato, de uma matemática, que nos ajude a sobreviver e a modificar o mundo.

Sobre a formação dos professores e dos pedagogos, a docente enfatiza que há um caminho longo a ser pavimentado. “Infelizmente, acho que temos muito a fazer na formação de licenciados em matemática e pedagogos. Não basta termos o conhecimento conceitual. Existem outros conhecimentos que precisamos ter, como o didático, didático de conteúdo, conhecimento sobre currículos e alunos. Essas estratégias pedagógicas precisam ser aceitas, porque a resistência de professores e de pais a didáticas diferentes é algo que precisamos repensar”, alerta a educadora. Confira mais detalhes no áudio a seguir:

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